sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A causa da morte



Talvez a morte tenha sido sempre sorrateira, sempre aqui costurada às minhas carnes, sangrando as minhas perdas. Ou mesmo encerrando as estações, os tempos, mesmo as alegrias. Olho a criança de seis anos e penso “ tanto viço, que vida mais verdejante, como pulsa esse pequeno”. Mas de  quantas versões bochechudas, saboreadas, cheiradas, deste pequeno mais tenro tive de me despedir? Da primeira fralda, o primeiro dentinho, os gritinhos, todos esses, uma morte doce e alegre, mas ainda assim uma morte, me levou de meu não leve,  para me trazer outras alegrias, outros sóis. 

Penso que a morte não culmina a vida, não chega só ao final, depois de um feliz atraso, como uma noiva de sombrias vestes. Vem antes, desde o sempre, amalgamada no tecido da vida. É por causa da morte que a gente ama. Essa dama. Grande organizadora da vida. É por causa do seu limite, cravado fundo em nosso dorso, que a vida nos falta e que, por isso mesmo, se nos dá. É por causa da morte que a gente cuida daquele que, por causa dela, pode partir e por isso mesmo, se faz precioso. O amor incrustado na efemeridade das coisas, no comezinho, no aceno. Por causa dela não nos digladiamos todos feito feras, ainda que por torpeza e burrice, o façamos tantas e demais vezes. É porque me falta um flanco, que a morte faz nascer e morrer, que me recrio, lanço de mim prolongamentos, pernas, haustos, tentáculos de viver, senescendo, fluindo. É por causa da morte que a vida não é uma paisagem imóvel, ela se nos desfila,  passa, move, arremessa. Quantas versões de nós já morreram para que nós habitássemos quem somos (e amamos) hoje? A morte. Essa maldita tecedeira, que rasga e queima e cose. Que nos enterra dentro dos nossos nascimentos. Empurra nossa cabeça pra luz do mundo, pro mundo que insistimos turvar. Ela chega com seus óculos, atirando tanta nitidez, tanta acuidade, corre, veja, olhe cá o que importa, cuida, canta. Sangra. Pranteia. Vive. Ama. É por causa da morte.

quarta-feira, 16 de julho de 2014


Divago

A vida só é fácil para os mortos. E só é bela para os vivos.



terça-feira, 17 de maio de 2011

Desejo


Saudades dum amor cheio
De ser antiga no corpo dum outro
Saudades do tempo, de uma dança lenta
alinhavando a força das coisas
Saudades do amor
encontro de peitos fartos
do pasmo, do desespero ante o outro
seu caos, seu poço, sua fome

Sua incandescência.
Saudade.
Do sim das coisas

domingo, 5 de setembro de 2010

PRECE
Confio no alado de meu dentro

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Retrato

Coisa esquisita isso de grafar dentruras

A palavra esbaforida, dedos curtos no que é fugidio, viscoso, veloz

Viver é mesmo coisa indizedoura, fica relinchando , escoiceando tudo quanto é nome

por enquanto o que posso é espiar, tentar murmúrio

o olho lotado de agora

o poro, casa vasta de se adentrar mundo

o corpo meu objeto, minha casa-asa de amar, alar o tempo

Eu? alma, acaso e flor

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Le temps
Penso no tempo como o que nos tatua de nós mesmos e inventa peles.

domingo, 24 de maio de 2009

Trancafios


Quero escrever um ato vazio. Janela esfaqueada no peito pra um sol de ébano. Peito-correnteza, peito do leite doce dos silêncios. Coração ternura triste, arrastando vazio por todo o corpo. Nenhum dique de luz. Jorragem. Travessia de escuros. Viver é desanúncio. Escuro é templo. Me escondo numa poça recôndita, numa víscera até pra mim longínqua, tranço tranças de escuridões elásticas, me amamento no arrepio dos nadas. Colho no vago o comer das minhas esfinges. Não quero resposta. Quero um caldo que me venha da angústia, que me abençoe as fissuras, me apascente os desfiladeiros. Quero hoje ensolarar-me de ser só.